domingo, 8 de novembro de 2015

Miguel Leão:Retrato triste da incompetência de sucessivos gestores públicos 




Portal de Entrada para rodovia que leva à cidade de Miguel Leão no Piauí (Foto: Gil Oliveira/ G1)Portal de Entrada para rodovia que leva à cidade de Miguel Leão no Piauí (Foto: Gil Oliveira/ G1)
Dois municípios do Piauí ocupam as últimas posições entre as menores economias do país, segundo dados divulgados nesta quarta-feira (12) pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), referentes a 2010. 
Os dos municípios estão localizados próximo a capital, Teresina (Foto: G1)Os dois municípios estão próximos à capital,
Teresina (Foto: G1)
Com 2,19 mil habitantes, Santo Antônio dos Milagres registrou o menor PIB entre os cerca de 5,5 mil municípios brasileiros: R$ 7,236 milhões. Já a cidade de Miguel Leão, que tem 1.252 habitantes, ficou em penúltimo lugar no ranking dos maiores PIBs, com R$ 8,792 milhões. O valor do PIB expressa o total de riquezas geradas no município ao longo de todo o ano.
Somados, os PIBs dos 1.325 municípios mais pobres do país correspondem a cerca de 1% dos R$ 3,77 trilhões gerados no Brasil em 2010. Só o PIB de São Paulo, o maior entre os municípios, equivale a cerca de 50 mil vezes o de Miguel Leão.
Moradora de uma casa de taipa em Miguel Leão, a 88 quilômetros de Teresina, a dona de casa Deodora Dias da Silva vive com os R$ 110 que recebe de um programa social federal. “Meu esposo trabalha em uma pequena lavoura e é de lá que colhemos o arroz e o feijão para comermos", diz ela. "Às vezes, a colheita não é boa e sobrevivemos com a ajuda dos outros”, diz a dona de casa.
Dona de casa, Deodora Dias da Silva, de 61 anos, conta que sua renda não passa dos R$ 110 por mês (Foto: Gil Oliveira/ G1)Dona de casa, Deodora Dias da Silva, de 61 anos, conta que sua renda não passa dos R$ 110 por mês (Foto: Gil Oliveira/ G1)
De acordo com Antônio José de Abreu (PT), que é vereador na cidade, a maioria da população recebe algum tipo de auxílio. "Nossa economia se baseia nos recursos distribuídos através dos programas do governo federal e dos salários pagos aos funcionários da prefeitura", diz ele.
Segundo dados do site da Caixa Economica Federal, de dezembro de 2012, 206 famílias do município de Miguel Leão são atendidas pelo programa Bolsa Família.
Sem coleta, moradora joga lixo no quintal de sua casa no Centro de Miguel Leão  (Foto: Gil Oliveira/ G1)Sem coleta, moradora joga lixo no quintal de casa,
no Centro de Miguel Leão (Foto: Gil Oliveira/ G1)
Jaqueline de Sousa é professora da rede municipal de ensino. Ela diz que está há três meses sem receber salário. “A última vez que recebi meu salário foi em agosto de 2012. Desde então não recebo pelas aulas que leciono", reclama. "Continuo indo à escola por causa do amor que sinto pelos alunos e sei que sem dar aulas eles serão prejudicados”, diz. O G1 Piauí procurou o atual prefeito de Miguel Leão, José Angerry Pereira de Sousa, que está viajando e não quis se pronuciar.
Instalações precárias
Além da falta de pagamento, professores e coordenadores do Centro de Referência e Assistência Social (Cras) reclamam da precariedade das instalações dos prédios públicos da cidade. “Não há vigias e tudo está quebrado", diz Francisca da Luz, coordenadora do centro de apoio.
Ela conta que outro edifício, usado pelo Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), também está em condições ruins. "Não é servida a merenda escolar para os alunos, que nem ao menos têm cadeiras para sentar", diz ela. "Há uma piscina que só foi usada na inauguração e que hoje se encontra sem proteção e abandonada, representando um risco para os alunos”, reclama.
Sobre os problemas encontrados na sede do Peti,  a secretária de Assistência Social do município, Regina Maria de Sousa Araújo, mas ela não quis dar declarações.
A sede do Executivo e do Legislativo enfrentam os mesmos problemas do Peti. “A prefeitura e a Câmara Municipal tiveram a energia cortada em abril de 2011 por falta de pagamento", diz o vereador Antônio Abreu, que relata, ainda, que processos na Justiça bloquearam as contas do município. "Tudo isso está gerando vários problemas para a população”, afirma. Ele também conta que não há coleta de lixo desde setembro de 2011. “As pessoas jogam o lixo no quintal de casa ou carregam até o lixão, que fica ao lado do campo de futebol, no Centro”.

Coordenador diz que prédio do Peti está abandonado e crianças ainda assistem aula no local (Foto: Gil Oliveira/ G1)Prédio usado por crianças está em condições ruins e piscina está abandonada  (Foto: Gil Oliveira/ G1)
Morador de Miguel Leão há mais de 10 anos, o aposentado Raimundo Carvalho Araújo Filho também reclama. "Temos o posto de Saúde da Rua Gameleira que começou a ser construído em 2004 e até este ano não foi concluído”, diz.
Segundo vereador Posto de Saúde da Rua Gameleira começou a ser construído em 2004 e nunca foi concluído em Miguel Leão (Foto: Gil Oliveira/ G1)Posto de Saúde começou a ser construído em
2004 e nunca foi concluído (Foto: Gil Oliveira/ G1)
Antônio José de Abreu, que faz parte da oposição ao atual prefeito, afirma que a saúde do município também é precária. "O médico não trabalha diariamente e temos duas ambulâncias que estão quebradas. Inclusive, uma delas está encostada há meses em uma Cerâmica que é de propriedade do atual grupo político que comanda a cidade. A outra está quebrada e estacionada na porta de um sítio na BR 316 próximo a cidade de Teresina”, relata.


Retrato triste da incompetência de sucessivos gestores públicos, que fazem da prefeitura da cidade fonte de renda e bem familiar, passando-a de pai para filhos e seus descendentes, a cidade de Miguel Leão é um símbolo negativo de que a perpetuação de um clã no poder em pleno regime democrático pode transformar.
Casas de pau-a-pique no bairro Faveira em Miguel Leão-PI
Casas de pau-a-pique no bairro Faveira em Miguel Leão-PI
No entroncamento da BR-316 com a estrada que leva ao município de Miguel Leão, no Piauí, a antiga placa de boas-vindas traz o slogan “Tempo de Mudar” pintado com tinta mais nova bem abaixo do nome da cidade. O complemento é o atestado de vitória da oposição nas eleições. Desde a criação, em 1962, a cidade foi governada pelos descendentes do fundador, ao ponto de ser conhecida como Terra dos Leões. Ao assumir a prefeitura em 2013, Joel de Lima se deu conta de que os novos tempos seriam difíceis: “Fomos do sonho ao pesadelo quando nos deparamos com a situação financeira.”
Joel de Lima, atual prefeito, na escola que aguarda ser reformada
Joel de Lima, atual prefeito, na escola que aguarda ser reformada
Quase toda a receita de Miguel Leão – 92% do total – vem de uma única fonte: o Fundo de Participação dos Municípios, que perdeu recursos com as desonerações do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). No início de 2013, a estimativa era receber R$ 7,3 milhões do fundo. Mas mais de R$ 2 milhões não chegaram – e qualquer real faz diferença por lá.
Escola Municipal fechada por falta de recursos
Escola Municipal fechada por falta de recursos
Por causa da queda de receita, não foi possível iniciar o plano de saneamento básico, uma prioridade. Os 1.244 habitantes convivem com esgoto a céu aberto. Um líquido viscoso faz poças até na entrada da prefeitura. Sobre ele passam as crianças que brincam, dezenas de cachorros sonolentos criados soltos, além de incontáveis galinhas e galos que ciscam pela cidade, sem dono. A água sai de poços artesianos. Não é tratada. A infecção intestinal é um mal-estar recorrente na cidade.
Sr. Marcos Antonio, sua esposa e filhos em sua humilde residência em Miguel Leão-PI
Sr. Marcos Antonio, sua esposa e filhos em sua humilde residência em Miguel Leão-PI
“Não há semana que eu não atenda pacientes com infecções associadas à falta de saneamento”, diz Wesley Sousa, médico que, desde setembro, vai à cidade três vezes por semana para atender no posto de saúde. Ampliar o período de atendimento do médico foi o grande feito na saúde. Antes, o clínico geral aparecia apenas uma vez por semana. Não foi possível comprar novas ambulâncias, vitais para levar os pacientes a cidades que têm hospitais, nem reformar o posto de saúde.
Casas não tem a mínima estrutura para se viver
Casas não tem a mínima estrutura para se viver
Ocorreu o mesmo com a educação. O ano acabou sem a reforma das duas escolas municipais, compromisso pessoal do prefeito. Além de pastor evangélico e ex-PM, Lima é professor. Uma volta pelas salas de aula deixa a impressão de que foram abandonadas: as paredes têm rachaduras, as lousas estão descascadas e há vigas de sustentação do telhado danificadas.
O investimento em infraestrutura é a mais nova preocupação. “Preciso descobrir de onde vai sair o dinheiro para ligar a luz do novo conjunto habitacional”, diz Lima. As 40 casas de alvenaria erguidas com repasses do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) devem ficar prontas este ano para receber uma parte dos moradores da Faveira, a favela da cidade.
A Faveira é o retrato da carência. Seus casebres são de pau a pique, com tetos de palha e chão de terra batida. A luz é “gato”. A água, de balde. O banheiro, no quintal. Marcos Antonio Silva, a esposa e os dois filhos moram ali, na penúria, à espera da nova casa. Não tem nem fogão. A comida é feita a lenha. Vivem do plantio e da venda de mandioca, da bondade alheia e de uma mesada de R$ 200 paga pela mãe de Silva, uma aposentada com mais de 80 anos. “A casa foi a única coisa que ganhei na vida”, diz Silva. “Nem Bolsa Família me deram.”
Dívidas
O dinheiro do fundo ainda cobre o parcelamento das dívidas contraídas por administrações anteriores. Miguel Leão tem o nome sujo no Cauc, o Serasa do setor público. São mais de 20 pendências. Só com o FGTS dos funcionários há R$ 1,5 milhão a ser pago. Por isso, não tem acesso aos programas de transferências da União. Em 2013, até a merenda escolar foi bancada pelo fundo.
Prefeitura de Miguel Leão enfrenta dificuldades por conta da inadimplência deixada pelas administrações passadas
Prefeitura de Miguel Leão enfrenta dificuldades por conta da inadimplência deixada pelas administrações passadas
Mas o grosso dos repasses do fundo – mais da metade – cobre o salário dos servidores, religiosamente. Segundo os moradores, era prática recorrente nas administrações anteriores atrasar o pagamento. “Quem trabalhava na prefeitura nunca sabia quando ia receber”, diz Raimundo de Araújo. “Para ter o que comer, as pessoas compravam fiado arroz, feijão, óleo num barracão dos Leão e a conta era descontada em folha.”
Crianças brincam de escolinha na Faveira em MIguel Leão-PI
Crianças brincam de escolinha na Faveira em MIguel Leão-PI
Para Lucilene Ribeiro da Silva, funcionária da prefeitura há nove anos, os atrasos eram humilhantes. “Quando a gente dizia numa loja em outra cidade que trabalhava na prefeitura de Miguel Leão, os atendentes riam e viravam as costas”, diz ela. Com o pagamento regularizado, comprou uma TV: “Tem 24 polegadas, é de tubo, mas nova: ficou mais barata porque foi retomada de alguém que não pagou”, explica. Lucilene não tem os produtos que foram as estrelas do IPI com desconto, como o carro, que considera “um luxo”, ou a máquina de lavar roupa. Como a maioria das mulheres da cidade, lava à mão.
Dona Deodora e Seu Paulo vivem em condições muito precárias em Miguel Leão
Miguel de Arêa Leão Netto, descendente direto do fundador, vê a derrota nas urnas como um vacilo da população. “Sempre fomos generosos: demos casas, remédios e ajudamos a todos sem cobrar.” Passado um ano de governo da oposição, tem convicção: “Não vão entregar o que prometeram e vamos ganhar a próxima.” No fim, em Miguel Leão, o que pode ser feito com o Fundo de Participação dos Municípios não define apenas a economia, mas também os rumos da política.

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