Bispo do Xingu, na
Amazônia, desde 1981, e em seu segundo mandato como presidente do
Conselho Indigenista Missionário (Cimi), dom Erwin Krautler acredita que
os povos indígenas não têm o que comemorar neste dia 19, Dia do Índio.
Para ele, a situação desses povos tradicionais piorou nos últimos anos,
tanto pela demora na demarcação de terras indígenas, o que favorece os
conflitos fundiários e a violência, quanto pela falta de atenção
governamental a direitos como saúde e educação.
Crítico de
mega empreendimentos na Amazônia, como a construção da Usina Hidrelétrica
de Belo Monte, no Pará, dom Erwin, que também é secretário da Comissão
Episcopal para a Amazônia, foi recebido pelo papa Francisco no Vaticano,
no último dia 4. Na ocasião, o bispo denunciou os problemas enfrentados
pelos povos indígenas, ribeirinhos e pelas comunidades amazônidas.
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“Vivo na Amazônia há quase 50 anos. Sou uma
testemunha qualificada para falar sobre esses assuntos. E, como bispo,
tenho o direito e a obrigação de chamar a atenção sempre que os direitos
humanos forem violados”, disse o austríaco, que tem cidadania
brasileira há 23 anos, em entrevista exclusiva à Agência Brasil.
Confira abaixo os trechos mais importantes da entrevista.
Quais foram os principais assuntos que o senhor tratou com o papa Francisco?
Conversamos
sobre as comunidades da prelazia do Xingu, que não recebem a eucaristia
porque contamos com apenas 27 padres para atender a cerca de 800
comunidades. O papa pediu que apresentássemos propostas para
solucionarmos esse problema que afeta cerca de 70% das comunidades da
Amazônia onde não há celebração eucarística. Também conversamos sobre a
questão ecológica.
E sobre a questão indígena em particular? O que os senhores conversaram?
Falamos
da questão indígena como um todo, mas também da situação de alguns
povos em particular, como os guarani kaiowá, de Mato Grosso do Sul, que
vivem encurralados em um espaço diminuto, o que lhes causa muito
sofrimento. Citei a situação dos povos do Vale do Javari, no Amazonas,
onde os índios são acometidos por doenças como a hepatite, e o governo, a
meu ver, pouco faz. Falei dos grupos de índios isolados que,
oficialmente, não existem. Para lembrá-lo do carinho que os povos
indígenas sentem por ele, lembrei o papa de sua vinda ao Rio de Janeiro,
em 2013. E disse-lhe que os índios do Brasil contam com sua ajuda, que
esperam que ele apele ao governo brasileiro para que demarque as terras
indígenas.
O senhor é um conhecido crítico de
megaempreendimentos e costuma acusar o governo e alguns parlamentares de
se unirem a grupos de interesses econômicos. Ao falar dos problemas que
afetam os povos indígenas, que aspectos o senhor citou ao papa?
Logicamente,
me referi à construção da Usina de Belo Monte, no Rio Xingu, no Pará.
Uma obra que afeta não apenas os índios da região e que, do jeito como
está sendo executada, levou à cidade de Altamira o caos em termos de
saúde, de educação, de transporte, de segurança pública. A Justiça
Federal acaba de determinar que a empresa responsável, a Norte Energia,
cumpra as condicionantes que deveriam ter sido cumpridas antes do início
das obras e que não vêm sendo observadas. Isso é positivo, mas as
medidas judiciais, infelizmente, estão chegando tarde. Há comunidades
indígenas que, de certa forma, já foram desmanteladas e só agora algumas
autoridades parecem descobrir a anormalidade da situação. Basta ver o
crescimento da população de Altamira. A cidade não se preparou para
isso. Às vezes, sentimos como se Belo Monte fosse um rolo compressor
passando sobre nós, mesmo que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva
(2003-2010) tenha prometido que esse projeto não seria empurrado goela
abaixo de ninguém, o que acabou acontecendo.
O senhor criticou o governo brasileiro ao papa?
Disse
a ele que o governo e o Congresso Nacional tomam iniciativas contrárias
aos interesses dos povos indígenas. Medidas, a meu ver,
inconstitucionais. Não houve tempo para que eu entrasse em pormenores,
mas eu disse que o governo não luta pela causa indígena. E que o
Congresso Nacional tem desrespeitado os direitos indígenas por meio de
várias iniciativas que contrariam esses direitos, como a propostas de
emenda à Constituição, a PEC 230, que quer transferir do Poder Executivo
para o Legislativo a prerrogativa do governo federal de demarcar terras
indígenas.
Em que medida a demora na identificação,
demarcação e homologação das terras indígenas prejudica os povos
indígenas e contribui para o acirramento da tensão no campo?
Ao
ser promulgada, em 1989, a Constituição Federal estabeleceu um prazo de
cinco anos para que todas as terras indígenas fossem demarcadas. Ou
seja, até 1993 todas as terras identificadas como territórios
tradicionais indígenas deveriam estar identificadas e homologadas.
Passados 21 anos do fim desse prazo, pouco mais de 44% foram realmente
demarcadas. Em 2013 não houve nenhuma demarcação. Dessa forma, essas
terras ficam escancaradas para todo o tipo de invasor. É bom que se diga
que demarcar novas reservas indígenas não significa criar enclaves, mas
sim reconhecer que, no interior do território nacional, há áreas
pertencentes à União destinadas ao usufruto dos povos que as habitam
desde tempos imemoriais.
Como o papa reagiu ao seu relato e a suas críticas ao Estado brasileiro?
Ele
não entrou em detalhes nem se pronunciou oficialmente sobre o assunto,
mas me ouviu atenciosamente e manifestou seu apoio à causa indígena.
O
senhor presidiu o Cimi entre 1983 e 1991 e, agora (2007- 2015), cumpre
seu segundo mandato à frente do órgão. Comparando esses dois períodos,
quais as principais mudanças em relação à situação dos povos indígenas?
No
final da década de 1980, a principal luta era em torno da Constituição
Federal, o empenho necessário para inscrevermos no texto constitucional
os direitos dos povos indígenas. Naquele momento, cantamos vitória, pois
houve vários avanços, como o fato de os índios terem deixado de ser
tutelados pelo Estado e se tornarem cidadãos brasileiros de fato, com
direito a suas terras, suas expressões culturais. Agora, estamos lutando
para impedir o avanço de iniciativas prejudiciais aos povos indígenas.
Mas a situação, hoje, está melhor ou pior?
Eu
penso que a situação dos povos indígenas piorou nos últimos anos,
sobretudo de 2003 para cá. Exatamente pela falta de empenho do governo
em favor das demarcações e da saúde indígena. Faltam interesse e vontade
política de assumir a questão indígena como uma causa importante na
defesa dos direitos humanos.
Há o que se comemorar neste dia 19, Dia do Índio?
Eu
preferiria falar em Dia dos Povos Indígenas. Não se trata de uma data
para festejar, mas sim para sensibilizar e conscientizar a sociedade a
respeito dos direitos desses povos. Em nosso atual sistema, o índio é
considerado um obstáculo ao chamado progresso, entendido apenas do ponto
de vista da taxa de crescimento econômico. Se entendermos
desenvolvimento como melhoria da qualidade de vida para todo o povo
brasileiro, os índios não só têm seu lugar, como sua sabedoria milenar é
uma riqueza para o país.
A demora na demarcação das
terras indígenas acirra uma disputa que, muitas vezes, envolve famílias
de pequenos produtores rurais, gente assentada pelo próprio governo em
terras hoje reivindicadas como territórios tradicionais. Entre essas
pessoas há católicos que criticam o fato de a Igreja, por meio do Cimi,
defender os interesses indígenas em detrimento dos de pequenos
produtores e trabalhadores rurais. Como o senhor responde a essas
críticas?
Eu não aceito dizerem que defendemos apenas os
povos indígenas, sobretudo contra pequenos agricultores. Essa equação
não funciona. O que dizemos é que se foi o governo que assentou famílias
de colonos em áreas indígenas, é o governo que tem que resolver o
impasse criado por ele mesmo. Não defendo e não aceito que se arranque
de uma área indígena, com o uso de força policial e sem a devida
reparação, uma família assentada pelo governo. Em casos assim, o governo
tem que disponibilizar a essa família uma área equivalente à que ela
ocupa e indenizá-la não só pelas benfeitorias feitas na terra, mas
também por todo o suor derramado em dezenas de anos de trabalho. Agora,
se alguém invadiu uma área sabendo se tratar de terra indígena, o
tratamento deve ser outro.
O senhor deve deixar a prelazia ao completar 75 anos. Já está cuidando de sua sucessão?
Eu
vou apresentar minha renúncia em 12 de julho deste ano, quando completo
75 anos. Isso não significa que deixarei a prelazia de um dia para o
outro. Haverá o processo de escolha do meu sucessor, mas é possível que
eu seja sucedido por três bispos, já que a regional da CNBB [Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil] sugere que, pelo seu tamanho, a prelazia
do Xingu seja desmembrada em três dioceses. Eu mesmo apresentarei à
regional um projeto nesse sentido.
O senhor teme que, com sua renúncia, a luta em prol da Amazônia e dos povos indígenas e ribeirinhos pode ser prejudicada?
Não,
não acredito. Pelo contrário. Eu talvez tenha até mais liberdade e
tempo para me empenhar em favor dessa causa. Não tenho o poder que às
vezes me atribuem. O que eu tenho é o direito e a obrigação de chamar a
atenção sempre que os direitos humanos forem violados.
O
país parece atravessar um momento preocupante, com um segmento da
sociedade se manifestando contra a garantia dos direitos humanos já
conquistados, grupos de justiceiros agindo à revelia da lei e casos de
ofensas a índios e outras minorias. O que o senhor diria a essas pessoas
já que, entre elas, há muitas que se identificam com os preceitos
cristãos?
Quem apela para fazer justiça com as próprias
mãos, defende esse tipo de coisa ou se opõe aos direitos humanos está se
distanciando da Igreja, de sua fé e de sua moral. Ainda que saibamos
que não devemos olhar apenas os fatos recentes, mas também procurarmos
as raízes desse comportamento e que, ao fazer isso, cheguemos à
conclusão de que a Justiça é muito lenta e que há muita impunidade,
sempre lutamos a favor dos direitos humanos. Precisamos de vontade
política, de políticas públicas, para frear esse tipo de coisa.